terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Sol Maior


Hoje surdo, ele, com 91 anos, se lembra de sua juventude. Nunca conseguiu ser atrevido, fez tudo como manda o figurino: estudou, casou-se, teve filhos, netos, passou a vida ao lado de sua mulher... mas, pensando bem, não fez o que queria. Queria ter sido um aventureiro. Seu maior sonho era ter conhecido Marrocos, seus mistérios, sua gente, seus cheiros e sua música. Sua música, em especial.

Durante toda a vida, além do trabalho cotidiano, aquela labuta necessária para alimentar os filhos, foi músico. Tocou de tudo, embora o violino sempre tenha sido sua maior paixão. Passava horas, dia após dia, dedicado àquele instrumento, seu grande amor.

Sua esposa, hoje uma senhora bem velhinha e um tanto quanto louca – falo da loucura saudável, aquela que liberta o ser humano de qualquer recalque social-, sempre amou a música. E foi esse, na verdade, o grande laço que os uniu. Quando jovem foi uma mulher bonita, mas nunca bela. Apaixonou-se por aquele rapaz elegante, de nariz fino e longo, que cheirava sempre à lavanda. “Ele foi um homem que se perfumava”, afirma, toda sorridente e orgulhosa. O amor daquele homem pela música a fascinava. Queria ser amada naquela mesma intensidade, e esse era seu maior desejo.

No entanto, aquele jovem rapaz tinha outros planos. Queria conhecer o mundo, construir uma obra grandiosa, deixar alguma herança para o mundo, fosse qual fosse. Mas tinha medo, não se permitia romper barreiras, não se deixava ser tomado por qualquer impulso juvenil. Era dedicado à sua família e à sua música. Nunca dedicou-se a si mesmo.

Durante mais de quarenta anos fez parte da orquestra sinfônica de Paris, era um dos violinistas. E, embora soubesse todas aquelas músicas de cor e salteado, nunca atreveu-se a solar. Queria ter sido solista. Achava que o solo, sim, era uma obra a ser deixada, nem que fosse apenas na memória dos que o assistiam. Mas era um jovem medroso.

Ele se nega a falar de amor, mas confessa que amou a música com toda a intensidade que podia haver dentro de si. Agora ele escuta as sinfonias de sua cabeça. E hoje, recém chegado de Marrocos, conta que, durante toda a viagem, escutou sempre a mesma música. Não poderia explicar. Aquele país realmente...

Aos 91 anos, depois de haver realizado seu maior sonho, sente-se como um rapaz novamente. Anda falante, sorridente e cheio de vida. Ele sabe que, agora, está livre. Enfim atreveu-se, enfim viveu. Sabe que pode ir, já fez o que tinha que fazer por aqui...

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